quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A ampulheta do velho sonhador

O velho pegou a ampulheta com a mão esquerda. Agora que ele a segurava eu prestava mais atenção nas formas dela do que das outras vezes. Mesmo tendo me intrigado tanto, mesmo com aquele mistério todo eu nunca tinha reparado nos seus detalhes. Ela parecia tão velha quanto o tempo que contava. Não estava suja, mas a forma do vidro, os pequenos entalhes na madeira pareciam vir de um passado em que coisas fabulosas deixavam pegadas na terra. Até mesmo a areia parecia mais antiga, mais preciosa, mais...repleta.
Olhei para o rosto daquele velho sonhador e ele estava tão solene que o tempo parou. Não dá para explicar como sabemos quando o tempo para, mas dá para sentir. Tudo fica parado e algo dentro da gente começa a funcionar de maneira diferente. Talvez nós pensemos muito mais rápido e pareça que o resto do mundo é lento ou talvez pensemos com tanta clareza que o silêncio sozinho basta para parar o tempo. O fato é que o tempo parou e aqueles segundos seguraram toda a mecânica das horas só para eu prestar atenção naquele momento.
O sonhador esperou o tempo voltar e girou a ampulheta (não teria sentido girar uma ampulheta em um lugar sem tempo). Os grãos de areia não precisaram de nem mais uma palavra para fazer o que faziam há tanto tempo, pular uns por cima dos outros naquela corrida caótica para o pequeno buraco onde poucos podiam atravessar de cada vez. O engraçado ou o triste é que após todos terem passado eles só estariam em um lugar idêntico ao anterior, uma outra cápsula de vidro com um buraco no topo. Será que só eu acho isso sem sentido?
Eu já conhecia muito bem aquele leve murmurar da areia quando se movia. Aquele antigo sonzinho que nos daria sono se não girássemos a ampulheta para motivos tão importantes como o tempo. Era para ser tudo bem familiar, mas tive que piscar os olhos alguma vezes para acreditar no que estava vendo.
A areia estava escapando pelo fundo da ampulheta, não estava se acumulando no fundo como de costume. Fugia por não sei que buraco e não caia simplesmente no chão. A areia era levada por alguma brisa e se perdia por aí, fazendo um ultimo leve som ao tocar no chão aos pés do sonhador.
Minha primeira reação foi avisá-lo, avisar ao velho que sua ampulheta estava quebrada, mas pelo rosto dele, sempre tão expressivo, com ou sem palavras, eu vi que era tudo planejado. Mesmo que a areia estivesse perdida para sempre, o velho sonhador não se importaria.